A Origem
Não sobrevive nem mesmo a inventividade pungente de Amnésia, tampouco a problematização de um “estado crítico” de O Cavaleiro das Trevas. O que resta de cinema é pura estetização desse universo de sonhos dentro de sonhos. A Origem cria uma trama complicada para não revelar nada, gerando uma expectativa já fadada ao embuste. Mesmo que Nolan tenha tentado criar um artifício (neste caso essa habilidade do penetrar no sonho alheio) que sustente seu filme, seja através de sequências de ação ou mesmo da explicação dos porquês destas ações – que simplesmente dominam a narrativa -, A Origem não passa de um filme sobre Paris se dobrando em looping. Não há espaço para reflexão (não que um filme precise dar tempo ao expectador, isso não é uma regra, e sim um conceito) e, quando há, é através de conversas entre o Cobb e Ariadne (Ellen Page), que raramente resultam em algo que realmente possa revelar uma “questão”. Ao contrário, essas cenas de “pessoas falando” (diria Hitchcock) só tendem a reforçar a boçalidade deste filme-argumento. A Origem é um photoshop, cheio de imagens bonitas, mas que não passam de matérias artificiais.
Dom Cobb é um ladrão, mas não ladrão usual. Ele rouba sonhos, penetrando no inconsciente de suas vítimas e roubando e/ou plantando ideias nelas enquanto dormem (“Qual é o parasita mais resistente? Uma bactéria? Um vírus? Não. Uma ideia! Resistente e altamente contagiosa. Uma vez que uma ideia se apodera da mente, é quase impossível erradicá-la. Uma ideia que é totalmente formada e compreendida permanece”). Essa habilidade de Cobb o deu a posição de um raro produto disponível no mercado para sacanear a concorrência no sempre perigoso mercado corporativo. Ele é então convocado para uma nova missão junto de uma nova equipe, onde terá que usar sua poderosa arma contra o herdeiro de uma grande corporação plantando uma ideia em sua mente. Nessa equipe está Ariadne, que é a menina que Cobb escolhe para fechar a equipe.
Ao passo que aprende como funciona o esquema de invadir a mente das pessoas, Ariadne também se revela o ombro amigo de Cobb, dando-lhe conselhos sobre como agir em relação ao seu passado e seu próprio “ofício” – numa espécie de autodidatismo da personagem que é, no mínimo, constrangedor. Mas o irônico é que, mesmo ela não sabendo nada sobre esse mundo de sonhos, tentará convencer Cobb a fazer ou não certas coisas. À exceção de Cobb, nenhum personagem realmente pensa, logo não existem, seja o magnata japonês (Ken Watanabe) ou o amigo capaz de se metamorfosear (Tom Hardy) ou o próprio parceiro (Joseph Gordon-Levitt). Não há uma filosofia criada para eles, a resolução é que todos parecem odiados pelo roteiro.
Claro que Nolan está e sempre estará muito acima de um Michael Bay, um Roland Emmerich ou um Timur Bekmambetov, pois tem uma visão muito diferente do cinema do que estes outros, quando ao menos tenta nos levar a uma experiência que, para além do mero arquétipo fantástico, visa entregar bom conteúdo. Mas de boas intenções não se fazem bons filmes. Não vale querer dormir, sonhar, dormir nesse sonho e sonhar dentro dele. Ser confundido, estar perdido dentro dos acontecimentos não é tão bom aqui quanto fora em Amnésia – filme que, esse sim, alcançava a catarse profunda e completa.
Mais do que a câmera lenta e as lutas captadas ou as cenas talhadas a diálogos espertinhos que só tem a função de atabalhoar a narrativa, A Origem carece de personagens. Rigorosamente, só tem um, que é o protagonista Dom Cobb, todos os demais são meros esqueletos ambulantes com habilidades especiais. É um filme sem latitude, pois sua “coordenada geográfica” está configurada de maneira a problematizar um único artifício: a dúvida sobre como realmente funciona essa chamada “arquitetura dos sonhos”. Não existe preocupação com nada externo a esse mundo, e essa edificação acaba se diluindo em si mesmo, afogando-se em sua própria antropologia filosófica, em seu pragmatismo, enfim. Mesmo quando se busca algo de novo narrativamente, esse “algo” é apenas um nível a mais de um sonho dentro de outro e que, quando não se consegue sair dele, ou seja, quando um personagem se vê impossibilitado de retornar ao nível anterior do sonho, está então condenado a um limbo mental e inconsciente. A Origem não erra por não ter as respostas, mas sim por não fazer as perguntas certas.
(Inception, EUA, 2010)
Como de costume, belíssima crítica Pedro!
Tenho que concordar com o que você disse, mas para mim o filme tem sim o seu “lado bom”. A cena em que Ariadne dobra a cidade em cima da mesma é uma das minhas favoritas, pois ao passo em que a personagem vai descobrindo aquele mundo e se fascinando com as suas possibilidades, nós, a platéia, também vamos descobrindo e nos fascinando com aquele filme, com o cinema do Nolan.
Se Nolan desse mais valor a esses “gestos”/”cenas”, seria ótimo. Acontece que a maior parte de Inception é tomada por uma quantidade enorme de informação inútil, e o mais curioso é que o próprio diretor parece saber disso, parece dizer isso o tempo todo, mas na prática, não segue seus próprios conselhos.
Vejamos alguns exemplos: enquanto seus personagens dizem que não é preciso haver “suficientes detalhes”, que “o mais importante é a sensação”, o filme está cheio de detalhezinhos inúteis que impedem a imersão. E enquanto seus personagens se esforçam para simplificar a ideia que vai ser inserida, considerando a importância de não serem tããão específicos e saberem lidar com o que encontrarem no caminho, Nolan trabalha com uma ideia tão complicada que precisa ser explicada a todo momento. Com menos exposição, penso eu, sobraria muito mais espaço para emocionar o público e se aprofundar nos personagens.
O que eu quero dizer com isso tudo é que Inception não é um fracasso total. Há na verdade muitas coisas boas para se “extrair” do filme, o problema está na forma como essas coisas são passadas para nós. Ao que parece, Nolan se esqueceu que estava fazendo um filme para dar uma palestra sobre cinema (o que é triste, pois essa ideia podia ter rendido bem mais…)