A Última Estação
A Última Estação adota um tom desde cedo bastante explícito: leveza, algum humor e didatismo. São opções feitas pelo diretor Michael Hoffman para dar um caminho ao filme, potencializar seu relato da maneira mais agradável possível. Isso logo reflete na dualidade que a narrativa impregnada gera na relação filme-espectador. Da metade para o final, o filme altera bruscamente o discurso, saindo de uma narrativa aprazível para uma mais rigorosa com o que o tema pede, pesando mais no drama – velha história da decadência/degradação de um mito. Contar a história dos “últimos dias” de Tolstoi e toda sua complexidade exigia essa apuração desde o início, não uma mudança de ritmo tão desregulada. Ou seja, o filme que começa não é o mesmo que termina. E o que termina é muito mais consciente de sua abordagem: é mais carnal, mais “desejante”, mais íntimo. A relação que se desenvolve com o filme passa a ser mais problemática, mais potente (deixa-se de lado a pompa artística na pretensão de criar belas imagens/paisagens; passa-se a encarar o filme, o cinema e o mundo). O que antes parecia não fugir de uma experiência limítrofe torna-se num objeto de apreço por seu material humano. Tolstoi, o mito, é descrito mais próximo de sua austeridade.
O filme começa já no derradeiro ano de vida de Tolstoi (Christopher Plummer), 1910. Adepto das coisas poucas, do celibato (mesmo que tenha tido filhos após assumir essa posição; mas ele mesmo diz numa cena não seguir corretamente as coisas que fala) da resistência passiva, do não luxo, o escritor vive com a família numa grande casa de sua propriedade (a esta altura, aos 82 anos, ele já era contra a propriedade privada, o que enlouquecia sua mulher). Como os próprios créditos iniciais dizem, era tido como um santo vivo. Sua esposa Sofya Andreyevna (Helen Mirren) discorda dessa sua postura perante as coisas que, segunda ela, foram conquistadas com muito trabalho. Sofya criticava o marido por suas posições filosófico-políticas e sua doutrina de desapegado a bens materiais, compartilhada com o amigo Vladimir Chertkov (Paul Giamatti), com quem fundou o movimento tolstoiano. Sofya suspeitava que os dois pudessem estar escrevendo um testamento que colocaria toda a obra de Tolstoi nas mãos do público. Ideias não menos coerentes com os ideais do escritor, que diz a certa altura não escrever para editores, e sim para o povo. Chertkov, sabendo da desconfiança de Sofya, manda o jovem escritor Valentin Bulgakov (James McAvoy) para ser seu confidente e responsabilizar-se pela correspondência entre Tolstoi e ele, bem como informar-lhe sobre os movimentos de Sofya.
Material humano não é um problema já que tratamos de personagens reais. Basta então saber aproveitar as possibilidades de investigá-los, de tirar-lhes de uma zona de conforto e convidá-los ao enfrentamento para com seus próprios demônios. Nesse sentido, Hoffman aproxima seu filme de uma imagem anticlássica, menos romântica, mais fiel à realidade sem necessariamente afundar-se nela (o filme é falado em inglês, mas os cenários, as fachadas, os jornais, estão em russo). Não existem heróis ou algozes em A Última Estação, o que impulsiona o filme para além do registro de bem ou mal, do certo ou errado. Tanto Sofya quanto Chertkov são ambos protagonistas. Isso se torna evidente com a mudança que o filme assume – bastante inadequadamente. No início Sofya parecia estar contra o próprio marido, era tida por Chertkov como um empecilho ao projeto que mantinha com Tolstoi de tornar sua obra pública através de um testamento. Depois, é Chertkov quem desrespeita as vontades do escritor. Nestes dois momentos, o retrato é, antes de caricato, humano: seres falíveis, expostos ao erro, ao equívoco, a ignorância. Não é aqui que residem os problemas do filme.
O filme está lá, a história foi contada, o mito foi reverenciado. Faltou estudá-lo. O material discursivo do filme é centrado justamente nos “últimos dias”, o que constitui duas armadilhas: Tolstoi (Homem, cristão ou santo, seja qual for o olhar) foi muito complexo para um registro caricato (e nesse sentido a interpretação de Plummer não coopera muito, ganhando a tela mesmo somente quando já está doente) e, principalmente, deixar-se seduzir pela grandeza do personagem e reduzi-lo a “um momento dramático” (sequência toda na estação de trem) enquanto a profusão das ideais do movimento tolstoiano ganham apenas recortes de jornais. James McAvoy, como Bulgakov, empresta ao filme boas cenas (especialmente a da perda de sua “santidade” e do primeiro encontro com o grande escritor), assim como Helen Mirren nos traços de Sofya. A Última Estação até alcança certo equilíbrio na metade final, quando já é tarde demais, quando sua fragilidade já havia há muito transparecido. Antes, suas células já haviam se deteriorado.
(The Last Station, Inglaterra/Alemanha, 2009) De Michael Hoffman. Com Helen Mirren, Christopher Plummer, Paul Giamatti, James McAvoy.